segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

A cidade que copiava



(I)


Um sombrero era o que eu precisava. O sol escaldante da Ciudad del Este era o que digamos abrasador. O aglomero de pessoas com sacolas de todos os tamanhos e espécies era algo de surreal. Minha camisa Hawaii-cheguei e meus óculos espelhados pediam um colar de flores,mas eu resisti à tentação. Pareceria Hannibal Lecter em algum de seus paraísos fugidios.
Eu não sentia falta de nada ali. Aprendi a conviver com a sujeira das ruas, mas com a nojeira das comidas não. Ligava diariamente para um restaurante de Foz que me mandava um rosbife de primeira linhagem. As putas podiam ser paraguaias mesmo. O problema maior era quando algumas começavam a fingir orgasmo. Era uma gritaria em dialeto guarani e acreditem, é muito broxante. Nada que uma boa bofetada nas ventas da vagaba não resolva. Putedo desgraçado. Aproveitam aqueles cochilos pós-foda para te levar a carteira embora. Peguei duas fazendo isso. Coitadas. O aprendizado pela dor. Eu também tinha passado por esse processo. Mas deixa isso para lá.
Comia muito chocolate. Era meu lanche da tarde, por vezes janta. As cervejas de litrão pelo menos eu tinha com facilidade. Havia um boteco que me lembrava aquelas tavernas mexicanas com um enorme sombrero no outdoor, daí minha idéia de cobrir a moleira. Geralmente nos finais das modorrentas e empoeiradas tardes eu sentava em uma mesa estrategicamente colocada de frente para o fluxo de pessoas e com as costas protegidas. Acendia um enorme charuto cubano colocava um Stones no meu player e fones nos ouvidos. As guarânias do som ambiente me deprimiam.
Eu sabia que não podia ficar completamente relaxado e que minha vida não valia um centavo. Não estava nem um pouquinho arrependido, afinal eu ainda estava com cento e vinte mil reais escondido e gastando na medida em que minhas ânsias consumistas e carnais pediam. Só que ás vezes imaginava o Butch, mais especificamente aquela balofa e suarenta cara no momento que abriu a maleta e viu um monte de jornal picado. Não queria estar na pele dos coitados que estavam juntos.
Eu estava exilado naquele paraíso do lixo há dois meses. Aluguei um apartamento no centro comercial da cidade, ou seja, na ante-sala do inferno. Procurei ir na contra-mão do pensamento dos meus perseguidores. Não imaginariam que eu me refugiasse em um lugar tão movimentado e ficaria tão exposto. Não. Um cara como eu não. Eu havia conquistado fama e respeito à custa de muita bala. Os pilantrinhas nunca se criaram comigo. Na minha função de cobrador do Butch, nada de fidalguia, não senhor. Muita dentadura rachada e nariz sangrento, afinal quem manda ser negador de conta. A merda é que o Butch emprestava dinheiro para a pior escória, desde prostitutas, essas geralmente iam pagando em mercadoria, até viciados. Estes na ânsia de conseguir a porcaria apareciam até com pedaços de dedos com anéis em ouro.
Para puta que pariu toda essa gente. Eu queria era curtir aquele dinheiro que apareceu fácil na minha mão. Butch, Butch, para quem quer ser "o patrão" como você mesmo se denominava, foi um erro imperdoável. Tratar com pouca consideração um ótimo limpa-trilhos como eu. Comi a tua mulher e limpei teu cofre enquanto se fazia de grande coisa em uma noitada com outros chefões. Serviço completo. Assim como a biscate da Kika fez em mim, barba, cabelo e bigode. Coitada, tomara que o desgraçado não descubra que a fiz me contar onde ficava o cofre.
Nunca me achariam ali. Era o que eu pensava até ver três caras de terno e chapéu atravessarem a rua com pistolas na mão...


(II)
Caminhos cruzados


Matar o chefão do tráfico foi o segundo maior erro da minha vida. O primeiro foi ter matado o Comandante Geral da Polícia, meu chefe. Quem disse que quem mata bandido é herói? Eu pensava que fosse herói, que estaria limpando a carniça que impregnava a corporação desde que aquele baixinho corrupto, sócio do narcotraficante Butch, assumiu a chefia, por indicação do próprio Governador. Meus vinte anos de dedicação, de prisões, de grandes operações, de tiroteios cinematográficos, de medalhas de bravura, foram simplesmente apagados com uma borracha, como se nunca tivesse existido. É irônico pensar que um homem que tinha o dever acima de tudo, estivesse agora na condição de bandido mais procurado do país.
Confesso que foi por impulso que matei os dois, um momento de extrema revolta. Butch havia se encontrado com aquela cópia reduzida do Sadam, meu chefe, na casa dele para tratar da captura do braço direito de Butch, que ao que parece, havia comido a mulher dele e lhe roubado uma grande quantia em dinheiro. Butch havia oferecido o dobro daquela quantia como recompensa pela cabeça do traidor. Foi aí que eu entrei na jogada. O comandante mandou me buscar em casa, disse que tinha uma missão especial para mim, que era o melhor homem da corporação e toda essa balela chantagista e cínica. Quando me falou dos detalhes sórdidos da operação, não tive dúvidas, esfacelei aquela cara gordurosa do Butch com três tiros, e, para não estragar o funeral do chefe, dei os outros três tiros no peito dele. Sabia que seria enterrado como herói.
Com toda a polícia, a imprensa e os caçadores clandestinos de recompensa no meu rastro, a solução foi me esconder aqui nesse pulgueiro paraguaio, o San Rafael Hotel, localizado a duas quadras da Pan American Highway, logo depois da ponte da Amizade. Amava minha profissão, mas com aquele dinheiro todo, que não fui idiota em deixar com os cadáveres, seria fácil mudar de vida. Tinha apenas que esperar a poeira baixar. Enquanto isso curtiria um pouco aquelas vadias paraguaias, disfarçado de turista.
Quando avistei aqueles três homens de terno e com pistolas nas mãos, sabia que eram homens do governo e que o alvo era eu. A Galeria Zuni seria minha salvação, não fosse aquele idiota com camisa Hawaii-cheguei trancando meu caminho. Adelante hijo da puta, foi o que disse enquanto empurrava aquele estorvo para dentro da galeria.


(III)
A mala:


- Trouxe a mala?
- Que mala?
- Como que mala?! A mala para carregarmos a encomenda!
- Ah! Não, eu trouxe esta sacola!
- Uma sacola de plástico?!
- Sim, era o que eu tinha em casa...
- E como vamos entregar a papelada pro Buch numa sacola de plástico?! Deixa de ser imbecil e vá comprar uma mala!
- Que tipo de mala?
- Uma que não chame a atenção! Agora vá e não demore, não podemos nos atrasar!
Imbecil filho da puta! Vou sumir com o dinheiro e deixar esse capiau pros leões! Que se foda! Eu não conseguia tirar os olhos da encomenda, não era à toa que todos estavam atrás daquilo. Filho da puta! Se nos pegam estamos fodidos, se não entregarmos no prazo estamos mortos! Bela situação! E o idiota aparece com esta sacola de plástico! Ah! Lá vem ele...
- Aqui patrão! Comprei a mala!
- Ainda bem! Estamos em cima da hora! Deixe-me ver!
- Aqui ó!
- Mas que porcaria é essa! Uma mala branca! Só um perfeito idiota compraria uma mala branca!
- Mas o branco é uma cor neutra...
- Tá! Não temos tempo! Pegue a encomenda!
- Puxa vida! Papéis?!
- Cale a boca é me dê aqui! Uma mala branca! Muito discreta não!?
- Mas é uma cor neutra...
Saímos do hotel de forma apressada. Eu tinha certeza que estávamos sendo seguidos. A notícia já havia se espalhado, todos queriam o suposto dinheiro que estávamos carregando, e aquela maldita mala branca, brilhando como um diamante de quinhentos quilates, não ajudava em nada. Fiquei no lado de dentro da calçada e deixei o gordo pelo lado de fora, servindo como escudo.
- Temos que pegar um taxi! Assim que passar um você chama!
- Tá certo patrão!
- Não sou seu patrão!
Eu estava paranóico. Em cada carro que passava, cada pessoa que nos olhava eu pressentia o ataque. E o olhar era inevitável: todo mundo que passava olhava para aquela lustrosa mala de couro branco, sem nenhum detalhe, apenas aquele branco que podia ser visto a uns dois quilômetros de distância, como um farol sinalizando para todos que eu estava passando por ali, dando sopa com a preciosa encomenda.
- Lá! Lá vem um!
- Está ocupado chefe!
- Escute aqui gordo: eu não sou seu chefe, patrão, ou seja lá o que for. Você é só um estorvo que me empurraram para estragar o meu dia, entendeu?!
- Sim chefe!
O pior de tudo é que ele não fazia isso para me irritar. O sujeito era burro mesmo. Ele não tinha idéia da situação medonha em que nós estávamos, e eu não iria perder tempo tentando lhe explicar.
- Dê olho nos taxis, hein?
- Pode deixar!
Eu queria entregar logo a encomenda, dar uma rasteira no gordo e me mandar pro Paraguai. O plano era perfeito. Atravessamos a quadra a pé. Ficar andando com aquela mala era tudo o que eu não queria. Mas ficar parado aguardando um taxi também não era uma boa idéia.
- Deveríamos ter chamado um taxi lá do hotel!
- Pois é! Eu nem cheguei a pensar nisso, patrão!
- Posso apostar que não pensou mesmo!
Chegamos na esquina da Marques. Cobri a mala branca com o meu casaco. Acendi um cigarro e esperei um pouco, em silêncio. O gordo esperava com as mãos na cintura. Vimos um grande Landau preto parar do outro lado da rua.
- São eles, gordo! Vai lá e entrega a mala!
- Sim chefe!
Gordo foi e eu saí fora. Dobrei a esquina e entre no primeiro ônibus que passou. Antes de subir escutei os gritos do gordo, seguidos de cinco estampidos. Foda-se! Meu plano deu certo, o dinheiro grudado no corpo com fita adesiva estava coçando, mas logo estarei no Paraguai, o bueiro do mundo, ninguém me achará!

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Trilogia Sangrenta!


By
Dr. Walker/ Zem/ Hutguer/

Machado, lona e alvejante...

18 horas e seis minutos.

Leila:
Bela porcaria! Um machado! Aonde eu vou conseguir um machado a uma hora dessas? Filho da puta! Saio do sobrado em direção ao centro. Tenho certeza de que estou com cara de suspeita! Se eu for presa deduro aquele imbecil no mesmo instante! E essa porcaria de igreja? Sempre odiei igrejas! É só entrar numa que lá está aquele puto pendurado na cruz! E me olhando com a cara de quem quer me comer! Bicha de merda! Se servisse para alguma coisa me faria tropeçar num machado! Maldita cidade! E essa merda de bar aqui na esquina? O nome já diz tudo: “Esse Ki não”!
Ele deve estar me culpando! Provavelmente está lá, se sentindo um coitado, como se não tivesse culpa alguma! Fumando um cigarro atrás do outro, como todo imbecil quando não sabe o que fazer. Cadê meus cigarros? Eu realmente preciso fumar. Será que um cigarro me deixará com a cara ainda mais suspeita? Que se dane! Estamos fodidos mesmo! Grande idéia a de me mandar comprar essas porcarias! Como é que vou entrar numa loja com essa cara e pedir um machado e uma lona? Maricas! Porque não veio ele comprar? Porque é uma bicha! Não tenho dúvidas disso!
Picar a merda do cadáver do Rui. Só podia ser idéia daquele estúpido! Será que ele faz idéia do trabalho que isso vai dar? Aquele corpo gordo e nojento! Deveríamos era dá-lo para os cães comer e sumir logo daqui! Foi dele a idéia de eu usar essa roupa de puta. “É para distrair os clientes”, disse ele. Pois iria distrair bem mais se enfiasse essa minissaia e esta meia calça ridícula naquele pançudo nojento! Eu mesma vou tratar de picar aquele saco de graxa. Nem que seja com um canivete.
Preciso achar um lugar para comprar essas merdas todas. Os homens passam e me olham como se eu fosse uma piranha. Malditas roupas! Que se fodam! Esses brochas de merda, indo e voltando do trabalho como se estivessem fazendo uma grande coisa das suas vidas. Se eu trabalhasse não precisaria picar corpos. Mas eu prefiro os cadáveres a ser uma vendedora de roupas e ficar perguntado para as cadelas desta cidade “você já foi atendida?” Nunca farei isso! Prefiro os cadáveres a ter de ser gentil com gente morta que ainda respira.
Caminho em direção ao calçadão. Deve haver uma merda de loja onde possa encontrar essas porcarias! Começo a perceber que cada vez que passo por alguém acabo baixando o rosto. Porra! Cabeça erguida! Esconder a face faz com que as pessoas olhem mais para mim. Tento manter certo controle e evitar pensar em tudo que aconteceu nos últimos minutos. Mas não dá. Filho da puta! Age como se alguém o tivesse nomeado chefe de alguma coisa! O Don Corleone das Missões! Não passa de uma bicha enrustida, o fato dele não tirar os olhos de minhas pernas não o tira desta condição! Puto de merda!
Sigo pela Marquês. Caminho rápido. A porra da sensação de que todos me observam não sai de mim. E devem estar olhando mesmo! A esta hora já deve ter saído no rádio. São uns abutres que vivem da carniça alheia! Devem estar procurando uma loira vestida como uma puta! Malditas roupas! Acho que vou fugir. Deixo aquele bosta com a porcaria daquele defunto e dou no pé! Ele que se foda!

Machado,lona e alvejante... (II)
Crimes de minissaia.

18 horas e quinze minutos

Assim que soube do assalto e do assassinato corri para a cena do crime. Quando entrei na padaria pedaços de massa encefálica e sangue adornavam os azulejos da parede e do piso. Pobre mulher, ainda segurava o bolo em suas mãos, sentada, com um buraco na testa e os miolos espalhados na parede. O rapaz do caixa estava deitado atrás do balcão, segurava um revólver, os olhos procurando Deus. O guarda pó branco tingido de vermelho pelo sangue que jorrou do seu peito. Levou seis tiros a queima roupa. O rastro de sangue não deixava dúvidas, deveriam estar por perto. Testemunhas disseram que estavam em três, um homem gordo, balofo mesmo, que não parava de suar e com cara de retardado, o outro homem aparentava ter uns 35 anos, trajava uma camiseta branca do Velvet Underground, cara de psicopata, foi quem atirou sem piedade no caixa, depois que este atirou no balofo. O terceiro bandido era uma mulher loira, mais oxigenada que loira. Vestia-se como piranha, dessas que ficam pelas ruas à noite tentando ganhar algum dinheiro em troca de uma chupada. Pelo que o taxista falou, usava uma minissaia que mal dava para tapar a bunda. Não seria difícil para mim, que conhecia cada palmo daquela cidade e cada beco fedorento, localizá-la. Era apenas questão de tempo.
Aquele era meu último crime depois que retornei à cidade, vinte anos depois. Estava deixando a polícia para me dedicar à arte de escrever. Estava cansado daquela vida. Gostava de ser policial, mas meu tempo esgotou-se, meu sistema nervoso já não obedecia mais. Tentava agora reviver um pouco o passado, colocar as idéias no lugar e começar uma nova vida, longe dos becos. Passei minha adolescência toda perambulando pelos cantos e recantos de San City. Pela Av Brasil, com seus ipês, pela lomba da Sete de Setembro, pela Praça da Matriz, onde gostava de ficar atrás dos pilares da entrada da catedral, dando um amasso e fodendo aquelas putinhas de nariz empinado que freqüentavam o Clube Gaúcho nos finais de semana. Por um instante a nostalgia tomou conta de mim, vendo aquela praça com seu aquário. Gostava de ficar olhando as tartarugas tomando sol nas tardes de verão. Cutucar os jacarés sem que o guarda percebesse. Também era meu refúgio quando matava aula no Augusto. A cidade havia mudado bastante nesses vinte anos. Quem diria que os crimes sairiam da Castelarim para invadir o centro?
O pipoqueiro me contou que viu uma loira com ar de suspeita descer pela Marquês do Herval. Estava andando apressada, baixava o rosto sempre que passava por alguém. Não perdi tempo e saí correndo em direção ao centro. Deixei o carro estacionado na esquina da Av Brasil com a Marquês e comecei a caminhar vagarosamente, olhando as vitrines, fingindo ser um turista. Desses que viajam trocentos quilômetros para ver um amontoado de pedras inúteis, erguidos com o sangue dos Guaranis. Passei pelo cinema e fui descendo em direção ao calçadão, misturado à multidão que passava apressada, absorta em suas intimidades.
Em frente ao jornal A Tribuna eu parei por instantes, para admirar um chapéu numa vitrine. Bendita hora. Entre bolsas, pochetes e chapéus pude ver aquelas coxas mal tampadas pela microssaia de couro. Ela olhava uma bolsa. Mulheres, só servem para foder mesmo e gastar nosso dinheiro com bolsas. Ascendi um cigarro e fiquei observando. Até que dava para comer aquela vadia. Não fosse meu trabalho. Fico imaginando aquela coisinha branca empunhando uma arma, sexy, mortal. Não contive a ereção. Armas e mulheres sempre me atraíram, principalmente as loiras. Maldito serviço.
Levei um choque quando repentinamente ela se virou e percebeu que eu admirava sua bunda. Me fitou com aqueles magníficos olhos azuis e veio em minha direção. Meu coração disparou, senti as pernas fraquejarem um pouco, esboçando uma tremedeira. Meu Deus, a vontade que tinha era de pegá-la no colo e sumir daquela cidade. Deixei cair o cigarro. Caralho! Fazia tempos que não ficava daquele jeito. A última vez foi quando vi a Camila pela primeira vez, parada na beira daquela rodovia. Pensei que estivesse curado.
Parou na minha frente e olhou no fundo dos meus olhos. Você tem um cigarro, disse ela. Aquela voz suave penetrou em meus ouvidos como a brisa do mar balançando os pêlos de meu peito em um entardecer à beira mar. Eu não sabia se alcançava o cigarro ou dava-lhe um beijo. Babaca é o termo exato. Como posso me deixar levar por emoções fúteis? Sou policial e minha obrigação, meu dever é acabar com essa raça de desajustados. Não consegui falar, apenas acenei a cabeça indicando um sim idiota. Claro que tinha, não apenas um cigarro, meu corpo todo e até minha alma estavam à disposição daqueles lábios pintados de batom.
- Você parece não ser daqui. Tem cara de turista. Está de passagem? Dizia ela enquanto colocava o cigarro entre os lábios.
- Sim. Não. Bem, quer dizer, é que. Roberto, meu nome é Roberto, e o seu? Foi o máximo que consegui retrucar. Idiota de merda, babaca, me odiava cada vez que isso acontecia. Não sou homem de ficar sem reações diante de uma puta, ainda mais uma puta assassina. Minha boca estava seca, precisava urgentemente de uma bebida, qualquer coisa, até mesmo querosene.
- Leila.
- O quê?
- Leila. Meu nome. Muito prazer. Você está bem?
- Ah! Sim. Claro. É que. Estou sim, quer dizer, não estou. Na verdade minha garganta está irritada, preciso tomar alguma coisa, refrigerante, cerveja, uísque, até querosene serve. Deve ser a poluição. Você conhece algum lugar aqui onde possa. Bem, água.
- Você me faz rir. Conheço sim, logo ali, na esquina de cima. Eu te acompanho, você não me parece bem.


Machado, lona e alvejante... (III)

18 horas e 36 minutos:

Leila estava atrasada. Eu caminhava de um lado para o outro e o maço de cigarros estava quase no fim. Assaltar aquela padaria em frente ao cinema não me pareceu uma boa idéia desde o início. Em pleno centro da cidade, numa rua de mão única, era óbvio que daria errado! O som tocava o disco White Light Hhite Heat, do Velvet Underground, o que só contribuía para a minha a aflição. Tirei o disco, mas o silêncio também me incomodava. Acendi outro cigarro e fiquei olhando pela janela, para ver se aquela vadia aparecia. Nada... Deveria ter chegado há vinte minutos e já se passaram trinta. Piranha de merda! É isso que dá chamar uma mulher para este tipo de trabalho! Elas são instáveis, imprevisíveis, como eu pude aceitar isso?! Era óbvio que daria errado! Uma vadia com uma arma na mão! Pode ter coisa mais perigosa do que isso? Se eu quisesse desenhar uma cena em que tudo vai dar errado, era só desenhar uma puta armada! Merda na certa! Só servem para foder mesmo! Só para isso! Meus pensamentos eram uma mistura de confusão com desespero. Sozinho naquele sobrado, em frente ao Clube Gaúcho. Acendi outro crivo e olhei para o chão. Lá estava o corpo de Rui, cravejado de balas. Merda! Rui era meu amigo desde sempre, andávamos sempre juntos, metidos em maracutaias, se encontrassem seu corpo, certamente chegariam até mim, e por tabela na vadia da Leila! Precisávamos nos livrar daquele corpo, e primeira idéia que tive foi a de fatiá-lo em pedaços e soltá-los em diferentes pontos do rio Ijuí. Eu nunca fui um anjo, mas jamais havia me envolvido em mortes e coisas do tipo. E aquela puta que não chega! Será que fugiu! Não! Ela é muito burra para isto. Voltei a ligar o som. Aquele silêncio só servia para que eu ouvisse os meus pensamentos com maior clareza, e isso, naquela situação, não era nada bom... Acendo o último cigarro e vou para janela. Nem sinal de Leila. Puta vadia! Olho para as janelas do sobrado. São janelas enormes. Essa porra deve ter uns 100 anos! Começo a observar as coisas ao meu redor. Na minha frente, do outro lado da rua está o clube Gaúcho. No mesmo instante lembro-me dos bailes e boates de um passado já distante. Sempre cercado por drogas e amigos inúteis, como na música do Lobão. Nestes 35 anos de idade, nunca fiz nada que preste! Olhando na minha diagonal está a praça, e lá atrás as torres da igreja. Nunca entendi a ânsia por turistas desta maldita cidade. Quem é que vai viajar “trocentos” quilômetros para ver uma réplica? Ninguém pode ser tão idiota a ponto de sair de uma cidade, ir até outra e para ver o quê? Uma porra de uma réplica! Eu realmente não entendo! Espicho o olho na direção da rua para ver se enxergo Leila. Filha da puta! Será que a piranha me deixou na mão? Não podia demorar tanto! Era só comprar um machado, uma lona, alguns sacos e alvejante, para podermos fatiar o cadáver do Rui e limparmos a sujeira, mas já haviam se passado 40 minutos! Aquela puta loira com cara de chupadora de pica deve ter parado em alguma loja para experimentar um vestido! Mulheres! Só servem para foder mesmo! Só para isso e nada mais! Eu estava realmente furioso com Leila. Era para ser um trabalho limpo, entrar, pegar a grana e sair. Como fomos imbecis! Dar uma arma para uma mulher! O cúmulo da burrice! Logo que entramos na padaria, a situação estava toda a nosso favor, até que a porta da cozinha se abriu e de lá saiu uma mulher carregando um bolo. Uma merda de um bolo! A piranha loira não teve dúvidas: explodiu a cabeça da cozinheira! Malditas mulheres! A bicha que estava no caixa puxou um trabuco e deu dois tiros em Rui. Eu tive de matar aquele maricas de bosta, e saímos os três correndo, Rui chegou aqui ainda vivo, mas morreu logo depois. Agora estamos sendo procurados, sem dinheiro, com um cadáver para fatiar e a piranha resolveu passear pela cidade! Eu sabia que quando Leila chegasse eu teria de segurar a minha raiva, pois iria precisar dela, para picar aquele maldito corpo, então aproveitava para esbravejar sozinho, mas o tempo estava passando, e a vaca não aparecia...

Machado,lona e alvejante(IV)
Escolha sangrenta!

18 horas e quarenta e dois minutos,

Ele sempre fez as escolhas erradas. Desde o início. Primeiro demonstrou empolgação com a a excêntrica família que apareceu no orfanato para adotá-lo. No novo lar a mamãe vivia no mundo das novelas Globais, enquanto papai colecionava armas de todos os calibres em um porão também usado para esconder e usar um outro arsenal, o de apetrechos sado masoquistas, onde por acidente, ou mais propriamente azar, certa tarde chegou mais cedo da escola e foi buscar uma bola que havia deixado no local. Papai levou um susto ao avistá-lo parado na porta. O homem estava preso pelos pulsos e cabeça em uma espécie de guilhotina e por trás era sodomizado pelo jardineiro.
A partir daí os espancamentos para mantê-lo em silêncio tornaram-se freqüentes até fugir de casa e cair na delinqüência. A FEBEM foi uma conseqüência em poucos meses. Saiu ao completar a maioridade e foi novamente adotado. Desta vez escolhera um velho pederasta que era extremamente ciumento. Seus impulsos o direcionavam as vadias da zona do meretrício, mas tinha de se contentar com aquele rabo peludo, o qual lasseou por cinco anos. Terminou quando desferiu uma facada e saiu do apartamento do protetor levando cinqüenta reais e um aparelho de videocassete. O velho sobreviveu e ele puxou três anos de prisão.
Ao sair reencontrou o Cale, velho amigo que morava em frente à casa dos pais adotivos que sempre flertou com o submundo e fora expulso de casa. Uma sociedade implícita começou. Pequenos furtos, cosméticos em mercados e remédios controlados nas farmácias embalados por muito rock clássico e alternativo no buraco mofado em que moravam. Escolhera o Cale como seu irmão.
Agora estava ali, com enorme barriga virada para cima, furada e jorrando sangue aos borbotões. Na mão esquerda, a metade de três dedos foram arrancadas com outro disparo. Merda, merda! Fora o atestado de burrice e amadorismo aquele assalto à padaria. Ainda mais com aquela vagabunda com o QI de uma minhoca junto. Tinha sido instruída a não atirar em hipótese alguma. E fez justamente o contrário. Cretina.
Por causa dela o magrão do caixa o atingiu. Sorte que não caiu e retrocedeu junto aos outros dois. Como chegou arrastado até o sobrado não lembrava claramente, pequenos flashbacks e as pessoas olhando aterrorizadas era o que restara na cabeça. Apagou logo que chegou no esconderijo. Quando voltou a si, não conseguia falar e o abdômen parecia tomado por minúsculas navalhas que o dilaceravam por dentro a qualquer mínimo movimento que fazia. Escutou a parte da conversa onde Cale pediu à vadia da Leila conseguir algum machado e lona. Iam picá-lo inteirinho! Malditos. De novo outra escolha errada. Cale já havia dado mostras em outras ocasiões da paranóia que era tomado em situações de stresse e falta de qualquer compromisso com o laço que os unia. Nada surpreendente. Agora que estava ferido Cale ia esquartejá-lo. Playboyzinho de merda. Quantas vezes havia interferido em tretas com traficantes conhecidos e livrado a cara do pilantra. Era o poder da xoxota. Só podia ser. Depois que arrumou aquela putinha, que também era uma renegada pela família, as coisas mudaram radicalmente. Cale queria que ela também participasse dos planejamentos. Palhaço! Se soubesse quantas vezes havia comido a puta enquanto ele descia aquela grande cabeça cornuda nos becos e bocas de fumo não daria tanto status à cadela!
Com os olhos semi-cerrados viu Cale andar nervosamente de um lado para outro da sala, um cigarro atrás do outro, ligando e desligando aquela porra de som do Velvet Underground. Puto desgraçado.
Mas teriam uma amarga surpresa, os pilantras. Não afundaria sozinho. Agora a música era The Gift, lembrou que era uma de suas preferidas.
O final daquele ato cabia a ele e ninguém mais. Tantas escolhas erradas ao longo de trinta e sete anos, pelo menos o ato derradeiro devia ser acertado. Gemeu alto, mas um gemido rascante, como que vindo do inferno de Dante. Cale se assustou e virou-se sobressaltado da vidraça onde estava controlando a movimentação da Marquês. Parecia extremamente surpreso. Aproximou-se em passos lentos e se ajoelhou ao lado do volumoso corpo. "-Rui! Você tá vivo,cara!".
Traidor de merda!
A pequena Bereta que sempre carregava no bolso interno da jaqueta de couro, surgiu fumegante em sua mão esquerda, que apesar da falta de pedaços de dedos, conseguira encaixar a arma na mão e desferir um certeiro tiro no peito de Cale, que o fitava incrédulo, como se não fosse com ele que aquilo estivesse ocorrendo. A vistosa banana, capa de um álbum famoso dos anos sessenta estampada na camiseta de Cale tingiu-se de um rubro vivo e viscoso...

Machado,lona e alvejante... (V)
Velha vida nova !

23 horas e quarenta e cinco minutos

A estrada estava praticamente deserta, uma que outro veículo passava por mim. Leila, com um sorriso nos lábios segurava minha mão que segurava sua coxa. Enquanto dirigia, cantarolava, junto com o radio, uma velha canção dos The Beach Boys... Wouldn't it be nice if we were older…Then we wouldn't have to wait so long…